O horror e a indignação

O jornal conservador, tido pelos mal informados como democrático, Folha de S. Paulo publicou, na sua página de Opinião, uma nota onde o jornalista Fernando de Barros e Silva, um dos seus editores, faz uma crítica à recente campanha colocada em marcha pela Atea.
O articulista se declara, para dar maior autoridade aos seus argumentos, “ateu convicto”. Sua crítica, porém, reproduz um conjunto de clichés bien pensants utilizados para combater justamente o ateísmo os quais é necessário considerar dada a situação atual no Brasil. Analiso o problema, para constar, como ateu também “convicto”.
Sua conclusão é a de que a campanha tem um caráter delirante dada a agressividade com que ataca a religião. O articulista cita o seguinte exemplo: “As imagens de Charlie Chaplin e de Adolph Hitler estão lado a lado. Abaixo do criador de Carlistos está escrito ‘não acredita em Deus’; abaixo do líder nazista, ‘acredita em Deus’. No alto, o slogan: ’Religião não define caráter’.
“Esta é uma das quatro propagandas que a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) estaria veiculando desde ontem, em ônibus em Porto Alegre e Salvador.
(…) seria fácil inverter a lógica da propaganda, opondo, por exemplo Madre Teresa de Calcutá (religiosa) a Joseph Stálin (o ateu)”.
Curioso argumento para um “ateu convicto”. Por mais simples que seja o raciocínio da Atea, ele prova logicamente o que pretende, ou seja, que não é a crença em um deus que torna uma pessoa boa, contestando um argumento típico dos defensores da crença no sobrenatural para quem, sem o supremo juiz não haveria moralidade, o homem não passaria de uma fera ou, em uma versão mais primitiva e mais direta, sem o medo do Inferno, todos seriam criminosos. O segundo argumento não prova nada porque ninguém defende o silogismo oposto, de que a descrença no sobrenatural tornaria alguém uma boa pessoa. É um non sequitur, uma falácia lógica. Os ateus, ao contrário dos que acreditam em deuses, acreditam naturalmente que entre os crentes há boas e más pessoas, o que é, naturalmente, mais razoável. Faço tal consideração levando em conta todas as limitações que têm a noção da luta entre o “bem” e o “mal”em sua incomensurável relatividade e abstração.
Diante de uma outra peça publicitária da mesma campanha, que relaciona o atentado de 11 de setembro com a inexistencia deste critério de bondade subordinado à existência do ente supremo, afirma o articulista que “quase todas as pessoas que acreditam em Deus reagiram com horror indignado”.
Importante observação, se for correta. Mas leva a uma outra reflexão: não é exatamente isso o que as pessoas que acreditam em deus sempre fizeram diante das críticas às suas convicções? Reagir com horror e indignação à descrença nas suas crenças? Ao fato de que outros pensem de modo diferente do seu? Não é exatamente essa a essência do problema: o dogmatismo, o fanatismo e a intolerância religiosa? O que seria mais comum, mais banal e mais pertinente à religião em toda a história da humanidade do que a intolerância religiosa?
Isso nos remete ao busílis.
O centro do problema aqui não está, na realidade, em que e como acreditam e deixam de acreditar os ateus em geral ou a Atea em particular. Em primeiro lugar vem o problema da interdição que esta associação está sofrendo das empresas publicitárias, à qual o articulista da Folha não faz referência alguma. Uma omissão fundamental que torna todo o debate uma obra de tergiversação. Este é um problema muito superior à qualidade da propaganda e remete diretamente ao direito de fazer propaganda, ou seja, à liberdade de expressão.
Esta interdição, sem dúvida alguma, tem a ver com o “horror” que o jornalista assinala da parte dos religiosos. A propaganda foi, significativamente, interditada após a assinatura do contrato, o que evidencia a ação de um lobby.
Este horror e esta indignação são famosos e tradicionais, são a manifestação de uma fobia peculiar de determinadas religiões, mais precisamente, de instituições religiosas, ao direito que qualquer outra pessoa tem de discordar dos seus dogmas. Não por mero acaso que a liberdade de expressão foi empunhada antes de mais como arma pela burguesia protestante dos séculos XVI, XVII e XVII contra estes horrorizados que em nome do seu horror espiritual perpetraram os piores horrores materiais contra outros seres humanos, antes de se declarar abertamente política. Hoje, diversas seitas protestantes disputam com o Vaticano em intolerância ao pensamento alheio.
A maior ameça à liberdade de expressão neste exato momento vem de um enorme lobby direitista no qual se encontra a Igreja Católica e outros religiosos com enorme vocação totalitária. Não vamos aqui ocultar que a Folha de S. Paulo faz parte deste lobby, apesar de procurar se dar ares liberais.
Alguém poderia dizer que o problema religioso não está na ordem do dia. Seria, como se diz popularmente, uma lamentável tentativa de tapar a luz do sol com uma peneira. Quem não viu a relação estreita entre os religiosos totalitários e os neo-cons norte-americanos? Quem não viu a campanha religiosa aflorar muito visivelmente na campanha do Sr. José Serra? Não foi este mesmo José Serra, apoiado por boa parte do monopólio capitalista da imprensa, que levantou a tese de que ele era bom candidato, um candidato de bom caráter, porque acreditiva em deus?
O jornalista da Folha, muito oportunamente, mas em detrimento do seu argumento central, levanta a questão de que “a Atea em sua campanha parece cultivar uma espécie de religião dos descrentes, de igrejinha dos sem fé”. Tradicional falácia bien pensant contra o ateísmo. Se você se declara ateu, não pode incorrer no mesmo mal que combate. Muito convicente, na aparência, para os não religiosos. No final, este tipo de argumento se reduz ao seguinte: aos religiosos, a religião não desabona, aos ateus, sim.
Não vejo que haja qualquer fundamento na imputação. Eu, por outro lado, não sou favorável a nenhum tipo de religião e nem creio que o ateísmo se preste de maneira mais favorável a isso, mas é um direito de quem quer que seja fundar a sua religião sobre o ateísmo, bem como sobre qualquer outro tipo de crença. Este direito tem que ser defendido em nome do princípio da liberdade de crença e de expressão. Os argumentos do artigo, no final das contas, não conduzem a defender ponto de vista algum, mas apenas a buscar desacreditar aqueles que, em condições desfavoráveis, lutam pelas suas idéias. Maior desserviço à liberdade de expressão não poderia ser feito.
A campanha da Atea, qualquer que sejam as limitações e falhas que alguém queira nela apontar, é oportuna diante da maré montante obscurantista e não apenas o que se dizem ateus, mas todos os que dizem que defendem a liberdade de expressão, deveriam sair em defesa do seu direito de expor o que acreditam. Isso, enfim, é a liberdade de expressão e a esta liberdade, como assinalamos, é, antes de mais nada o direito à liberdade da consciência religiosa e política, o que é precisamente o caso aqui.
É preciso discutir com os jornalistas brasileiros, que trabalham para grandes empresas capitalistas, que a liberdade de expressão não é apenas o direito de criticar Lula e o PT.

Uma resposta para “O horror e a indignação

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