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CNBB e zika: Hierarquia da Igreja retoma campanha contra o direito ao aborto

Em meio à crise envolvendo o zika vírus e os milhares de casos de mulheres grávidas de fetos com microcefalia a hierarquia da Igreja católica retomou a campanha contra o direito ao aborto.

Enquanto os setores democráticos da sociedade saíram das tumbas e decidiram, enfim, se manifestar em defesa do direito das mulheres ao aborto, a hierarquia da Igreja, por seu lado, está dando uma série de entrevistas, publicando documentos e aproveitado a Campanha da Fraternidade, atividade anual da Igreja no Brasil no periodo da Quaresma, para retomar a propaganda contra o direito das mulheres, supostamente em defesa da vida.

Nessa suposta defesa da vida, Igreja e demais setores que atuam contra o direito ao aborto, ignoram a vida de milhares de mulheres que morrem em decorrência de procedimentos realizados em condições de risco, ilegalmente, e mesmo as condições de vida das mulheres obrigadas a manterem gestações de feto com pouquíssimas chances de vida extrauterina. Uma situação traumatizante que já foi considerada como tortura contra a gestante. Nos debates que levaram à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em favor do direito ao aborto em casos de anencefalia, a imposição da gestação de fetos com anomalia grave foram esclarecedoras. Mas, a atual crise envolvendo o zika vírus, confirmou o quanto foi limitada a decisão do STF que autorizou o aborto apenas em casos de anencefalia.

A decisão sobre a interrupção da gestação deve ser única e exclusivamente da mulher. Ninguém tem o direito obrigar a mulher a manter uma gestação indesejada, ou que, apesar de desejada impõe limites que apenas à ela cabu julgar se são suportáveis ou não.

A maternidade é uma decisão muito importante para ser imposta. É sobre a mulher que incide toda a responsabilidade com relação aos filhos. Nesse sentido, a situação se agrava. A mesma sociedade que pretende decidir sobre a maternidade, não oferece as condições mínimas para o exércicio da maternidade. Nos casos de crianças com deficiências, mesmo as mais leves, a necessidades de cuidados é ainda maior.

O aborto é um direito da mulher e mais do que nunca tem se comprovado como um problema de saúde pública, particularmente pelo Brasil se tratar de um país atrasado.

Como direito deve ser garantido à todas as mulheres, que devem exerce-lo de maneira livre, sem interferencia do Estado e da Igreja. Aquelas que não considerarem certo não façam, mas o desejo daquelas que decidirem interromper a gestação deve ser garantido e respeitado.

Aborto: Uma afirmação contra o besteirol e a hipocrisia

“O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis. Todo o resto é falsidade. Todo o resto é hipocrisia”

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À BBC Brasil, o médico Drauzio Varella deu uma entrevista na qual faz afirmações importantes, que tratam de maneira precisa o problema no aborto no Brasil.

Por aqui a interrupção da gestação é a quarta causa de morte materna. Isso considerando os casos registrados como o aborto tendo sido a causa da morte. Sendo que muitos podem ter como causa o aborto, mas serem registrados como qualquer outro problema, seja infecção, hemorragia etc.

De acordo com informações do Ministério da Saúde, todos os anos são registrados mais de 100 mil casos de internações que têm relação com aborto. Esses casos são, em sua maioria, de mulheres que realizaram abortos clandestinos, geralmente em situação de risco, sem condições mínimas de higiene etc., e acabam tendo de ser internadas, seja por problemas como hemorragias, seja para a realização de procedimentos como a curetagem.

Essas internações além de serem onerosas para o estado significam que as mulheres estão realizando abortos em condições inadequadas e correndo riscos desnecessários, uma vez que o aborto feito em condições ideais sequer necessita de internação da paciente.

Para quem tem dinheiro, o aborto já é livre no Brasil

Uma palavra de ordem do movimento de mulheres diz: “essa hipocrisia gera hemorragia”. Mas que mulheres acabam nos hospitais com sequelas de um aborto clandestino? Em sua grande maioria, mulheres pobres que recorreram a métodos diversos (chás abortivos, introdução de instrumentos pontiagudos no útero ou que se submeteram a açougues humanos que são boa parte das clínicas de aborto no país; isso quando não é feito simplesmente no fundo do quintal por pessoas sem qualquer preparo para realizar o procedimento).

É nesse sentido que a afirmação de Drauzio Varella é uma verdade incontestável.  O médico diz que a forma como a questão do aborto é tratada no País é uma grande hipocrisia e que para quem tem dinheiro a prática já é legalizada. “O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis. Todo o resto é falsidade. Todo o resto é hipocrisia”, disse.

Mesmo com a ofensiva reacionária, que tem feito a polícia agir perseguindo mulheres por aborto, o alvo são as mais pobres. Nos últimos anos em vários estados do país clinicas foram fechadas. Mulheres foram presas. Dificilmente isso ocorre nas clínicas de luxo, onde pode-se cobrar até 15 mil reais por um aborto.

“A mulher rica faz normalmente e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre”, diz Varela, que conclui: “Proibir o aborto é punir quem não tem dinheiro”.

É interessante notar que esse posicionamento progressista do médico não tenha tanto espaço nas mesmas TVs em que fala sobre tantos outros assuntos.

Hipocrisia de toda sociedade

Segundo pesquisa realizada em 2010, “uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida, o equivalente a uma multidão de 5 milhões de mulheres”. Na faixa etária entre “35 e 39 anos a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já fez um aborto”. A imensa maioria ilegais e inseguros. O perfil dessas mulheres foi o que mais chamou a atenção: tem filhos é casada e se definiam como religiosas, cristãs. Do “total de mulheres que declaram na pesquisa já terem feito pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães. Pouco menos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas, um quarto protestantes ou evangélicas”.

Esses números mostram que a hipocrisia é de toda a sociedade e passa inclusive pelas diversas religiões que proíbem o aborto. E principalmente das autoridades que mantém a ilegalidade do aborto diante dessa realidade, misturando fé e legislação; pecado e crime.

Para transformar essa realidade, conceder direitos democráticos às mulheres e garantir o estado laico é passada a hora de o Brasil legalizar o aborto.

Daí que mais uma declaração de Drauzio Varella faça também todo sentido: “se não está de acordo, não faça, mas não imponha sua vontade aos outros.”

Pela imediata legalização do aborto

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A gravidade da situação do aumento de mulheres infectadas com o zika vírus demonstrou que o Brasil tem fugido de um tema inevitável, a questão da legalização do aborto.

O país cujo Código Penal remonta o Estado Novo (1940) permite o aborto em casos de gestação resultado de estupro e quando oferece risco de morte para a mãe. Em 2010, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) também ficou autorizada a interrupção da gestação em casos de feto com anencefalia. Algo muito restrito diante de uma realidade cada vez mais complexa.

A decisão do STF foi específica. Apenas casos de anencefalia, comprovados com laudos médicos. Mas a complexidade da realidade mostra a limitação dessa decisão e da legislação brasileira. A questão da microcefalia é um exemplo disso.

Milhares de mulheres, provavelmente picadas pelo mosquito aedes aegypti tiveram filhos com microcefalia. Provavelmente picadas, por que está sendo descoberto que a transmissão pode ocorrer por meios diversos, como pela saliva e a própria relação sexual.

Essas infecções têm aumentado o número de mulheres que estão recorrendo ao aborto clandestino. É importante destacar que isso se agrava entre as camadas proletárias, já que não apenas a transmissão ocorre mais entre as trabalhadoras (bairros operários, sem saneamento básico, por exemplo, são onde a proliferação do mosquito é maior), mas também porque são elas que não têm recursos para pagar por um aborto em clínicas etc. Um exemplo disso é que o Nordeste é a origem da epidemia que nesse momento se espalha por todo o país.

É necessária uma imediata mudança na legislação do aborto. Não dá mais para negar que o aborto é uma realidade e que essa realidade deve se impor diante de restrições meramente morais, motivadas por crenças religiosas que não podem mais se impor sobre a população e definir as normas legais de um país que se pretende laico.

É necessário legalizar o aborto no Brasil. Garantir às mulheres o direito de decidir sobre a manutenção ou não de uma gestação. Somente a própria mulher grávida pode julgar sua capacidade de levar adiante a gestação.

Esse é o melhor momento para defender a mudança na legislação e garantir esse direito elementar às mulheres. É o momento de o governo petista atender a esta reivindicação histórica e manifestar-se diante desse problema contemplando uma necessidade material, garantindo o direito das mulheres.

Aborto e zika: a hipocrisia vai resistir à epidemia?

 

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Internacionalmente, a campanha contra o aborto é permanente por parte da Igreja Católica e encontra eco em muitas outras igrejas cristãs, no espiritismo etc. Pura hipocrisia.

Na política não é muito diferente. Nesse caso, reina o cinismo. Às vezes recheado de demagogia. Quando é de esquerda, diante dos movimentos sociais vale o tapinha nas costas e a defesa do direito da mulher, e na televisão diante de milhões de pessoas a negação do aborto. Quando é a direita, nem demagogia. Para eles, aborto deve ser crime hediondo como defende, por exemplo, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB).

Tudo isso mistifica, cria uma cortina de fumaça sobre uma questão que diz respeito a direitos e saúde pública (agora mais do que nunca).

O zika vírus chegou em meio a esta realidade. E o vírus que ao contaminar mulheres grávidas pode causar microcefalia no feto, está se tornando o motor de um amplo debate sobre este problema e, quem sabe, levar a ações concretas como a legalização do aborto.

A epidemia

Começou no Nordeste. A razão inegável: as precárias condições de saúde pública e infraestrutura. O mosquito, aedes aegypti, o mesmo que transmite a dengue e a chikungunya, é típico de áreas onde falta saneamento básico, por exemplo. Falta prevenção. Daí que as mulheres pobres estejam mais expostas ao vírus, às picadas.

Para evitar a contaminação o Ministério da Saúde e especialistas orientam que as mulheres grávidas, ou que queiram engravidar, evitem ser picadas; como? Usando roupas que cubram a maior parte do corpo. Ou evitem ficar grávidas.

Ignoram que a maioria das gestações não é planejada e que no país são altos os índices de estupro, portanto, são altas as chances de uma gestação indesejada também por isso. Além do que, pesquisas recentes afirmam que a transmissão do zika pode se dar também pela saliva e relação sexual. Ou seja, todas as mulheres correm o risco de, grávidas, contrair o zika e ter fetos que desenvolvam a microcefalia ou outras malformações relacionadas.

Até agora autoridades afirmam que chegam a quatro mil os casos suspeitos de microcefalia causadas pelo zika.

O direito das mulheres

Há anos que o movimento de mulheres luta pelo direito ao aborto. Muitas mulheres, sozinhas em sua decisão de interromper a gestação em um verdadeiro ato de desobediência civil, também estão de alguma maneira fazendo o mesmo.

Agora todo o país está discutindo o tema. Ainda com muita hipocrisia e cinismo. Ainda sem ouvir as mulheres, mas é inegável que o assunto veio à tona, está nos jornais e nas conversas.

É o momento de aproveitar a mobilização em torno do problema da microcefalia e legalizar o aborto e tirar, ao menos nesse aspecto, o país do atraso.

 

Teoria: “O termidor do lar”

Publicamos aqui trecho do livro “A Revolução traída”, de 1936, que discute a condição da mulher e a defesa de seus direitos elementares, entre eles, o direito ao aborto, garantido na URSS- conquistado com a Revolução de 1917- e posteriormente retirado pela burocracia stalinista 

Leon Trótski

A Revolução de Outubro cumpriu honestamente a sua palavra no que diz respeito à mulher. O novo poder não se contentou em dar à mulher os mesmos direitos jurídicos e políticos do homem, fez também – e muito mais do que isso – tudo o que podia, e de qualquer modo infinitamente mais do que qualquer outro regime, para lhe dar acesso a todos os domínios econômicos e culturais. Mas, da mesma forma que o “todo poderoso” Parlamento britânico, a mais poderosa revolução não pode fazer da mulher um ser igual ao homem; melhor explicando, partilhar entre ela e o seu companheiro os encargos da gravidez, do parto, da amamentação e da educação dos filhos. A revolução tentou heroicamente destruir o velho lar familiar estagnado, instituição arcaica, rotineira, asfixiante, no qual a mulher das classes trabalhadoras era voltada aos trabalhos forçados desde a infância até a morte. A família, considerada como uma pequena empresa fechada, devia ser substituída, no espírito dos revolucionários, por um sistema completo de serviços sociais: maternidades, creches, jardins de infância, restaurantes, lavanderias, dispensários, hospitais, sanatórios, organizações desportivas, cinemas, teatros etc. A absorção completa, por parte da sociedade socialista, das funções econômicas da mulher, ligando toda uma geração pela solidariedade e assistência mútua, devia levar a mulher e, portanto, o casal, a uma verdadeira emancipação do jugo secular. E, enquanto esta obra não tiver sido realizada, quarenta milhões de famílias soviéticas manter-se-ão vitimas dos costumes medievais, da sujeição e da histeria da mulher das humilhações quotidianas da criança, das superstições deste e daquele. Sobre isto não há ilusões. E é precisamente por isto que as sucessivas modificações do estatuto da família na URSS são as que melhor caracterizam a verdadeira natureza da sociedade soviética e a evolução das suas camadas dirigentes.

Não se conseguiu tomar de assalto a velha família. E não foi por falta de boa vontade. Nem porque ela estivesse firmemente enraizada nos espíritos. Pelo contrário, após um curto período de desconfiança para com o Estado, as suas creches, os seus jardins de infância e as suas diversas fundações operárias e depois delas as camponesas mais avançadas compreenderam as enormes vantagens da educação coletiva e da socialização da economia familiar. Infelizmente, a sociedade mostrava-se demasiado pobre e pouco civilizada. Os verdadeiros recursos do Estado não correspondiam aos planos nem às intenções o partido comunista. A família não pode ser abolida: é preciso substituí-la. A verdadeira emancipação da mulher é impossível no campo da “miséria socializada”. A experiência bem depressa confirmou esta amarga verdade formulada por Marx, oitenta anos antes.

Durante os anos de fome, os operários alimentavam-se tanto quanto possível – com as famílias, em certos casos – nos refeitórios de fábricas ou em estabelecimentos análogos e este fato foi oficialmente interpretado como sendo o advento de costumes socialistas. Não é preciso debruçarmo-nos aqui sobre as particularidades dos diversos períodos – comunismo de guerra, NEP, primeiro plano quinquenal – relativamente a este aspecto. A verdade é que, desde a supressão das senhas de racionamento em 1935, os operários mais bem pagos começaram a voltar à mesa familiar. Seria errôneo ver neste regresso ao lar uma condenação do sistema socialista, que, verdadeiramente, não tinha sido posto à prova. Este procedimento dos operários e das suas mulheres encerrava, no entanto, um julgamento implacável da “alimentação social” organizada pela burocracia. A mesma conclusão se impõe no que diz respeito às lavanderias socializadas, onde se rouba e se estraga a roupa em vez de a lavar. Regresso ao lar! Mas a cozinha e a lavagem caseiras, hoje louvadas com certo embaraço pelos oradores e jornalistas soviéticos, significam o regresso das mulheres às caçarolas e aos tanques, isto é, à antiga escravidão. É bastante duvidoso que a noção da Internacional Comunista sobre “a vitória completa e irreversível do socialismo na URSS” seja, depois disto, convincente para as donas de casa dos arredores! A família rural, ligada não só à economia doméstica, mas também à agricultura, é infinitamente mais conservadora do que a família urbana. De um modo geral, só as comunas agrícolas pouco numerosas estabeleceram, no princípio, a alimentação coletiva e as creches. A coletivização, dizia-se, devia produzir uma transformação radical da família: pois não se estava em vias de expropriar as vacas e as galinhas do camponês? De qualquer modo, não faltaram comunicados sobre a marcha triunfal da alimentação social nos campos. Mas quando começou o recuo, a realidade rompeu de imediato as brumas do bluff. O kolkhoze não dá em geral ao cultivador senão o trigo de que ele precisa e a forragem para os seus animais. A carne, os produtos lácteos e os legumes provêm, quase inteiramente da propriedade individual dos membros dos kolkhozes. A partir do momento em que os alimentos essenciais são frutos do trabalho familiar, não se pode falar em alimentação coletiva. De maneira que as pequenas parcelas, dando uma nova base ao lar, prostram a mulher sob um duplo fardo.

O número de lugares fixos nas creches era em 1932 de 600.000 e cerca de quatro milhões de lugares durante o tempo de trabalho nos campos. Em1935 havia cerca de 5.600.000 camas nas creches, mas os lugares permanentes eram, como dantes, muito menos numerosos. De resto, as creches existentes, mesmo em Moscou, Leningrado e noutros grandes centros, estão longe de satisfazer as mais modestas exigências. “As creches, onde as crianças se sentem pior do que em casa, não passam de meros asilos”, diz um grande jornal soviético. Em face disto, é natural que os operários bem pagos evitem mandar para lá os seus filhos. Por outro lado, para a massa dos trabalhadores, esses “maus asilos” são ainda em muito pouco número. O executivo decidiu recentemente que as crianças abandonadas e os órfãos seriam confiados a particulares; o Estado burocrático reconhece assim, através do seu órgão mais autorizado, a sua incapacidade para desempenhar uma das mais importantes funções socialistas. O número de crianças recebidas nos jardins de infância passou, em cinco anos, de 1930 a 1935, de 370.000 para 1.181.000. Este número, em1930, espanta pela sua insignificância. Mas, em 1935, é ainda ínfimo em face das necessidades das famílias soviéticas. Um estudo mais aprofundado permitiria ver que a maior parte e, em todo caso, a melhor parte dos jardins de infância é reservada às famílias dos funcionários, dos técnicos ,dos stakhanovistas etc.

O executivo teve igualmente de constatar recentemente que a decisão de pôr fim à situação das crianças abandonadas e mal vigiadas é muito pouco aplicada. O que esconde esta terna linguagem? Só ocasionalmente tomamos conhecimento, por meio de pequenos artigos publicados nos jornais em caracteres minúsculos, que mais de um milhar de crianças se encontram em Moscou, “mesmo nos lares, em condições extremamente penosas”; que as casas para crianças da capital encerram 1.500 adolescentes que não sabem em que se hão de tornar e estão voltados à rua; que em dois meses de outono (1935), em Moscou e em Leningrado “7.500 pais foram processados por terem deixado os seus filhos sem vigilância”. Qual a utilidade destes processos? Quantos milhares de pais os evitaram? Quantas crianças “mesmo nos lares, em condições extremamente penosas” não foram contadas para a estatística?

Em que diferem as condições “mais penosas” das condições simplesmente penosas? Quantas perguntas sem resposta! A infância abandonada, visível ou dissimulada, constitui um flagelo que atinge proporções enormes como consequência da grande crise social em que a antiga família continua a desagregar-se, mais rapidamente do que aparecem as novas instituições que a possam substituir.

Os mesmos artigos ocasionais nos jornais, juntamente com a crônica judiciária, mostram ao leitor que a prostituição – última degradação da mulher em proveito do homem capaz de pagar – grassa na URSS. No outono passado, o lzvestia revelou de súbito que “cerca de mil mulheres que se dedicavam nas ruas de Moscou ao comércio secreto do seu corpo” acabavam de ser detidas. Entre elas, 177 operárias, 92 empregadas, 5 estudantes etc. O que as lançava para as ruas? A insuficiência do salário, a carência, ou a necessidade “de arranjar algum suplemento para comprar sapatos ou um vestido”. Em vão tentamos conhecer, mas só conseguimos em aproximação, as proporções deste mal social. A pudica burocracia soviética impôs o silêncio à estatística. Mas este silêncio constrangido serve para provar que “a classe” das prostitutas soviéticas é numerosa. E aqui não se trata de uma sobrevivência do passado, pois que as prostitutas são recrutadas entre as jovens. Ninguém sonhará em censurar particularmente o regime soviético por esta praga tão velha como a civilização. Mas é imperdoável falar no triunfo do socialismo enquanto subsistir a prostituição. Os jornais afirmam, na medida em que lhes é permitido tocar neste delicado assunto, que a prostituição decresce; é possível que seja verdade em compensação com os anos de fome e de desorganização (1931-1933). Mas o retorno às relações fundadas sobre o dinheiro leva, inevitavelmente, a um novo aumento da prostituição e da infância abandonada. Onde há privilegiados, há também parias.

O grande número de crianças abandonadas é, indiscutivelmente, a prova mais trágica e mais incontestável da penosa situação da mãe. Até o otimista Pravda se vê forçado a amargas confissões sobre este assunto. “O nascimento de um filho é, para muitas mulheres, uma séria ameaça”. E foi precisamente por isto que o poder revolucionário concedeu à mulher o direito ao aborto, um dos seus direitos cívicos, políticos e culturais essenciais, enquanto durarem a miséria e a opressão familiar, apesar do que possam dizer os eunucos e as velhas dos dois sexos. Mas este triste direito, torna-se, pela desigualdade social, um privilégio. As informações fragmentárias fornecidas pela imprensa sobre a prática do aborto são impressionantes: “195 mulheres mutiladas pelas abortadoras”, das quais 33 operárias, 28 empregadas, 65 camponesas de kolkhozes, 58 donas de casa, passaram em 1935 por um hospital no sul do Ural. Esta região só difere das outras porque as informações que lhe dizem respeito foram publicadas. Quantas mulheres mutiladas por ano devido a abortos mal feitos em toda a URSS!

Tendo demonstrado a sua incapacidade em fornecer às mulheres que se veem obrigadas ao aborto necessária assistência médica e instalações higiênicas, o Estado muda bruscamente de rumo e opta pelo das proibições. E, como em outros casos, a burocracia faz da pobreza uma virtude. Um dos membros do Tribunal supremo soviético, Soltz, especialista em questões relacionadas ao casamento, justifica a próxima interdição do aborto dizendo que, não conhecendo a sociedade socialista o desemprego, ela, a mulher, não pode ter o direito de rejeitar as “alegrias da maternidade”. Filosofia de padre, ainda por cima dispondo por acréscimo da matraca do gendarme. Lemos há pouco no órgão central do partido que o nascimento de uma criança é, para muitas mulheres – e seria mais correto dizer para a maior parte – “uma ameaça”. Acabamos de ouvir uma alta autoridade soviética constatar que a decisão respeitante à infância abandonada é muito pouco aplicada”, o que implica, certamente, um incremento do número de crianças abandonadas. E eis que um alto magistrado nos diz que, no país “onde é bom viver”, os abortos devem ser punidos com prisão, exatamente como nos países capitalistas onde é triste viver. Como facilmente se compreende, na URSS, como no Ocidente, serão sobretudo as operárias, as camponesas e as domésticas, as quais será difícil esconder o pecado, que cairão nas garras dos carcereiros: Quanto às “nossas mulheres”, que pedem perfumes de boa qualidade e outros artigos congêneres essas continuarão a fazer o que lhes agrada mesmo sob o nariz de uma justiça benevolente. “Temos necessidade de homens”, acrescenta Soltz, fechando os olhos às crianças abandonadas. Milhões de trabalhadoras, se a burocracia não tivesse posto nos seus lábios o selo do silêncio, poderiam responder-lhe: “Façam vocês próprios as crianças!”. Eles esqueceram visivelmente que o socialismo deveria eliminar as causas que levam a mulher ao aborto e não fazer intervir a polícia na vida íntima da mulher para lhe impor as alegrias da maternidade”.

O projeto de lei sobre o aborto foi submetido à discussão pública. O apertado filtro da imprensa soviética teve mesmo que deixar passar numerosas queixas amargas e protestos abafados. E a discussão acabou tão bruscamente como começou. O executivo, em 27 de junho de 1936, fez de um projeto infame uma lei três vezes infame. Numerosos advogados tributários da burocracia foram mesmo incomodados por isso. Louis Fisher escreveu que a nova lei era, em suma, um deplorável mal entendido. Na verdade, uma lei dirigida contra a mulher, mas que institui para as senhoras um regime de exceção, é um dos frutos legítimos da reação termidoriana (esta lei foi depois revogada).

A solene reabilitação da família, que tem simultaneamente lugar – coincidência providencial! – com a do rublo, resulta da insuficiência material e cultural do Estado. Em vez de se dizer: “Nós fomos muito pobres e muito incultos para estabelecer relações socialistas entre os homens, mas os nossos filhos e a posteridade o farão”, os chefes do regime colaram de novo os pedaços da família e impuseram de novo, sob a ameaça do máximo rigor, o dogma da família, fundamento sagrado do socialismo triunfante. Mede-se, com desgosto, a profundidade desta retirada!

A nova evolução arrasta tudo e todos: o literato e o legislador, o juiz e a milícia, o jornal e o ensino. Quando um jovem comunista, honesto e cândido, se permite escrever no seu jornal: “Seria melhor abordar a solução deste problema: como pode a mulher libertar-se das tenazes da família?”, ele recebe um par de dentadas e cala-se. O ABC do Comunismo (livro de apresentação popular do comunismo, escrito por Bukharin e Pré obra-jensyky nos primeiros anos da revolução) é declarado um exagero de esquerda. Os preconceitos duros e estúpidos das classes médias incultas renascem sob o nome de moral nova. E que se passa nos confins do imenso país? A imprensa, só numa ínfima percentagem, reflete a profundidade da reação termidoriana no domínio da família.

Crescendo em intensidade a nobre paixão dos pregadores, ao mesmo tempo que crescem os vícios, torna-se muito popular o sexto mandamento entre as camadas dirigentes. Os moralistas soviéticos só precisam renovar ligeiramente a fraseologia. Inicia-se uma campanha contra os divórcios demasiado fáceis e freqüentes. A imaginação criadora do legislador anuncia já uma outra medida “socialista”, que consiste em fazer pagar o registro do divórcio e aumentar a taxa em caso de repetição. Não nos enganamos quando predissemos que a família renasce, ao mesmo tempo que se firma de novo o papel educativo do rublo. Esperamos que a taxa não seja um incômodo para os meios dirigentes. As pessoas que dispõem de bons apartamentos, de automóveis e de outros elementos de conforto arranjam facilmente os seus negócios privados sem publicidade supérflua e, portanto, sem registro. A prostituição só é humilhante e penosa nos “bas-fonds” da sociedade soviética; no vértice desta mesma sociedade, onde o poder se junta ao conforto, a prostituição reveste a forma elegante de serviços recíprocos e até mesmo o aspecto da “família socialista”. Sosnovsky já nos deu a conhecer a importância do fator “auto-harém” na degenerescência dos dirigentes.

Os amigos líricos e acadêmicos da URSS têm olhos mas não para ver. A legislação do casamento, instituída pela Revolução de Outubro, e que foi, no seu tempo, um objeto de legítimo orgulho para a Revolução, está transformada e desfigurada por largos empréstimos do tesouro legislativo dos países burgueses. E tal como se pretendesse juntar o ridículo à traição, os mesmos argumentos que outrora serviram para defender a liberdade incondicional ao aborto e ao divórcio, a emancipação da mulher, a defesa dos direitos da pessoa, a proteção da maternidade – são hoje retomados para imitar ou proibir um e outro.

O recuo reveste formas de uma repugnante hipocrisia e vai mais longe do que o exigido pela dura necessidade econômica. Às razões objetivas do regresso às normas burguesas, tais como o pagamento de uma pensão alimentar à criança, junta-se o interesse social que têm os meios dirigentes de aprofundar o direito burguês. O motivo mais imperioso do atual culto da família e, sem qualquer dúvida, a necessidade que tem a burocracia de uma estável hierarquia das relações e de uma juventude disciplinada e espalhada por quarenta milhões de lares, a servir de pontos de apoio à autoridade e ao poder.

Enquanto se pensava em confiar ao Estado a educação das gerações jovens, o poder, longe de se preocupar em manter a autoridade dos mais velhos, do pai e da mãe em particular, esforçou-se, pelo contrário, por desligar as crianças da família para as salvaguardar desses velhos hábitos. Ainda recentemente, no primeiro período quinquenal, a escola e as juventudes comunistas faziam apelos às crianças para que desmascarassem o pai bêbado ou a mãe crente, para os envergonhar e tentar “reeducá-los”. Outra coisa é saber com que resultados… Este método abalava, no entanto, as próprias bases da autoridade familiar. Uma transformação radical foi realizada neste domínio, que não é desprovida de importância. O quarto mandamento foi reposto em vigor ao mesmo tempo que o sexto sem, na verdade, invocar a autoridade divina; mas a escola francesa dispensa igualmente este atributo, o que não a impede de estabelecer a rotina e o conservadorismo.

A preocupação de preservar a autoridade dos mais velhos já provocou mesmo uma reviravolta de política no que respeita a religião. A negação do Deus e dos seus auxiliares e dos seus milagres era o mais importante elemento de divisão que o poder revolucionário fazia intervir entre pais e filhos. Mas, esquecendo-se do progresso da cultura, da propaganda séria e da educação científica, a luta contra a Igreja, dirigida por homens do tipo Yaroslavsky, degenerou frequentemente em facécias e vexames. O assalto aos céus cessou como o assalto à família. Preocupada com a sua boa reputação, a burocracia ordenou aos jovens ateus que depusessem as armas e se pusessem a ler. Isto foi só o princípio. Um regime de neutralidade irônica foi instituído pouco a pouco face à religião. Esta foi a primeira etapa. Não seria difícil prever a segunda e a terceira se o curso dos acontecimentos dependesse apenas das autoridades estabelecidas.

Os antagonismos sociais elevam, sempre e onde quer que seja, ao quadrado ou ao cubo a hipocrisia das opiniões dominantes; esta é, aproximadamente, a lei histórica do desenvolvimento das ideias, traduzida em termos matemáticos. O socialismo, se merece este nome, significa relações desinteressadas entre os homens, amizade sem inveja e sem intrigas, amor sem calculismos aviltantes. A doutrina oficial declara tanto mais autoritariamente que estas normas ideais já estão realizadas quanto mais a realidade protesta com energia contra semelhantes afirmações. Diz o novo programa das Juventudes comunistas soviéticas, adotado em abril de 1936: “Uma família nova, com cujo desabrochar se preocupa o Estado Soviético, é criada no campo da igualdade real do homem e da mulher”. E um comentário oficial acrescenta: “A nossa juventude só é movida pelo amor na escolha do companheiro ou companheira. O casamento de interesse burguês não existe para a nossa geração” (Pravda, 9 de abril de 1936). Isto é uma verdade enquanto se trata de jovens operários e operárias. Mas o casamento de interesse também se encontra pouco espalhado entre os operários dos países capitalistas. Pelo contrário, tudo se passa de outra maneira nas camadas médias e superiores da sociedade soviética. Os novos grupos sociais subordinam automaticamente o domínio das relações pessoais. Os vícios engendrados pelo poder e pelo dinheiro em torno das relações sexuais florescem na burocracia soviética como se ela tivesse por fim alcançar a burguesia do Ocidente.

Em contradição absoluta com a afirmação do Pravda acima indicada, o “casamento de interesse” ressuscitou; a imprensa soviética reconhece-o, quer por necessidade, quer por um acesso de franqueza. A profissão, o salário, o emprego, o número de galões na manga, adquiriram um significado crescente, dado que as questões do calçado, das peles, da habitação, dos banhos e – sonho supremo – do automóvel, estão intimamente ligadas. Só a luta por um quarto une e desune não poucos casais todos os anos em Moscou. A questão dos pais tomou uma importância excepcional. É bom ter por sogro um oficial ou um comunista influente e por sogra a irmã de um alto personagem. E quem se admira com isto? Poderia ser de outra maneira?

A desunião e a destruição das famílias soviéticas, nas quais o marido, membro do partido, membro ativo do sindicato, oficial ou administrador, evoluiu e adquiriu novos gostos, enquanto a mulher, oprimida pela família, se mantém no seu antigo nível, formam um capítulo dramático do livro da sociedade soviética. O caminho de duas gerações da burocracia soviética está juncado pelas tragédias das mulheres atrasadas e desprezadas. E o mesmo fato pode ser observado hoje na jovem geração. É sem dúvida nas esferas superiores da burocracia, onde constituem elevada percentagem os arrivistas pouco cultos, que consideram que tudo lhes é permitido, que sevai encontrar mais grosseria e crueldade. Os arquivos e as memórias revelarão, um dia, os verdadeiros crimes cometidos contra as antigas esposas e mulheres em geral pelos pregadores da moral familiar e das “alegrias obrigatórias” da maternidade, invioláveis aos olhos da justiça.

Não, a mulher soviética não está ainda libertada. A igualdade completa apresenta ainda sensivelmente mais vantagens para as mulheres das camadas dirigentes, que vivem do trabalho burocrático, técnico, pedagógico, intelectual, de maneira geral, do que para as operárias e, particularmente, para as camponesas. Enquanto a sociedade não estiver em condições de suportar os encargos materiais da família, a mãe não pode desempenhar com verdade uma função social, a não ser que disponha de uma escrava, de uma ama, ou boa cozinheira, ou outra coisa do gênero. Das 40 milhões de famílias que formam a população da URSS, 5% ou talvez 10% baseiam direta ou indiretamente o seu bem-estar no trabalho de escravas domésticas. Seria mais útil conhecer o número exato de criadas, para apreciar sob um ponto de vista socialista a situação da mulher, do que toda a legislação soviética por mais progressista que seja. Mas é precisamente por isso que as estatísticas escondem as criadas na rubricadas operárias ou dos “diversos”!

A condição de mãe de família, comunista respeitada, que tem uma criada, um telefone para dar as suas ordens, um carro para as suas deslocações etc., pouca relação tem com a da operária que faz as suas compras, que cozinha, que traz os filhos do jardim de infância para casa – quando tem um jardim de infância. Nenhuma etiqueta socialista pode esconder este contraste social, não menos evidente do que a diferença, em qualquer país do Ocidente, entre a senhora burguesa e a mulher proletária.

A verdadeira família socialista, libertada pela sociedade das pesadas e humilhantes tarefas quotidianas, não terá necessidade de nenhuma regulamentação. Até mesmo a ideia das leis sobre o divórcio e o aborto não lhe parecerá melhor do que a recordação das casas de prostituição ou dos sacrifícios humanos. A legislação de Outubro tinha dado um passo firme na direção desta família. O estado atrasado do país sob os aspectos econômico e cultural provocou uma cruel reação. A legislação termidoriana recua para modelos burgueses, não sem cobrir a sua retirada com frases falsas sobre a santidade da “nova” família. A inconsistência socialista dissimula-se ainda aqui, sob uma hipócrita respeitabilidade.

Os observadores sinceros espantam-se, sobretudo no que diz respeito às crianças, com a contradição entre os princípios proclamados e a triste realidade. Um fato como o recurso a extremos rigores penais contra o abandono de crianças faz sugerir o pensamento de que a legislação socialista em favor da mulher e da criança não passa de hipocrisia. Os observadores do tipo oposto são seduzidos pela amplitude e generosidade dos intentos que tomaram forma de leis e de órgãos administrativos. No que respeita às mães, às prostitutas e às crianças abandonadas, vítimas da miséria, estes otimistas dizem que o crescimento das riquezas materiais dará pouco a pouco a carne e o sangue às leis socialistas. Não é fácil dizer qual destas duas maneiras de pensar é a mais falsa e amais nociva. Mas é preciso sofrer-se de cegueira histórica para não avaliar a envergadura e o arrojo das intenções sociais, a importância das primeiras fases da sua realização e as vastas possibilidades abertas. E ninguém pode deixar de se indignar com o otimismo passivo e na realidade indiferente dos que fecham os olhos ao volume das contradições sociais e se consolam por meio de perspectivas de um porvir, cujas chaves se propõem deixar, respeitosamente, à burocracia. Como se a igualdade do homem e da mulher não se tivesse tornado, para a burocracia, numa igualdade na negação de todos os direitos. É como se estivesse escrito que a burocracia é incapaz de instituir um novo jugo em vez de liberdade!

A história ensina-nos bastantes coisas sobre a dominação da mulher pelo homem, e de ambos pelo explorador. E também sobre os esforços dos trabalhadores que, procurando sacudir a canga com risco da própria vida, só conseguiram, na realidade, mudar de cadeias. A História, definitivamente, não conta outra coisa. Mas como libertar efetivamente a criança, a mulher e o homem, eis sobre o que nos faltam exemplos positivos. Qualquer experiência do passado é negativa e impõe, antes de mais, aos trabalhadores, a desconfiança para com os tutores privilegiados e incontrolados.